Como entidade que regula a atividade dos jornalistas, único organismo independente ao qual incumbe assegurar o funcionamento do sistema de acreditação profissional dos jornalistas, equiparados a jornalistas, correspondentes e colaboradores da área informativa dos órgãos de comunicação social, bem como o cumprimento dos respetivos deveres profissionais, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) não tem ficado indiferente às constantes e recorrentes queixas, denúncias e/ou reclamações, que chegam a este organismo, por alegadas violações dos deveres consagrados nas diferentes alíneas do n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista por parte dos jornalistas.
No que respeita aos deveres assinalados nas alíneas do n.º 2, do mesmo artigo 14.º, o Estatuto prevê que os jornalistas sejam alvo de sanções disciplinares por violações dos deveres aí enunciados, nos termos do artigo 21.º do Estatuto do Jornalista. Esta possibilidade foi introduzida no diploma aquando das alterações legislativas levadas a cabo em 2007. Até então, e desde 1999, altura em que foi criado o Estatuto do Jornalista, o artigo 14.º descrevia apenas um conjunto de deveres sem que em nenhuma norma legal estivesse prevista qualquer tipo de sanção em caso de violação desses deveres. Foi entendimento do legislador, na época, ser “necessário suprir uma lacuna existente no ordenamento jurídico português, qual seja a da responsabilização pelo incumprimento dos deveres legais dos jornalistas (…). Pretendendo ultrapassar este vazio, optou-se por conferir à Comissão da Carteira Profissional do Jornalista, entidade pública independente composta por jornalistas experientes, designados em igual número pelas estruturas profissionais e patronais, e presidida por um jurista, competências para apreciar os casos de violação dos deveres legais dos jornalistas e para aplicar sanções ao seu incumprimento”[1]. Um notório avanço em relação ao diploma inicial, mas que, 15 anos depois, se afigura desajustado.
Neste contexto, considera o Plenário da CCPJ que o facto de os deveres fundamentais dos jornalistas, para exercer a respetiva atividade com respeito pela ética profissional, enunciados no n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista, estarem excluídos da possibilidade de serem alvo de sanções disciplinares, é algo que já não se ajusta à realidade atual, e por isso, necessita de uma revisão legislativa que os inclua também no âmbito das infrações profissionais previstas no artigo 21.º do Estatuto do Jornalista. Apesar desta consideração, o presente articulado na lei não impede a CCPJ de avaliar e ajuizar a atuação dos jornalistas quando manifestamente desenvolvem ações que violam os deveres descritos no n.º 1 do artigo 14.º.
Assim o deixou expresso o legislador na época ao referir que se optou “por conferir à Comissão da Carteira Profissional do Jornalista (…) competências para apreciar os casos de violação dos deveres legais dos jornalistas e para aplicar sanções ao seu incumprimento” (negrito e sublinhado nosso). Nem de outra forma se poderia entender. Se a entidade que regula a atividade profissional dos jornalistas tem competência para aplicar sanções pelo incumprimento de determinados deveres, terá, desde logo, no âmbito das suas competências genéricas, aptidões para apreciar e assegurar o cumprimento de todos os deveres profissionais que imperam sobre os jornalistas. Uns constituem, à luz da presente lei, infrações profissionais nos termos do artigo 21.º do Estatuto do Jornalista (os citados nas alíneas do n.º 2 do artigo 14.º do EJ). Os outros (os mencionados nas alíneas do n.º 1 do artigo 14.º do EJ), serão alvo de apreciação por parte da CCPJ sempre que violados pelos jornalistas.
O mesmo entendimento resulta também da leitura do n.º 1, in fine, do artigo 18.º-A do Estatuto do Jornalista, que refere que incumbe à CCPJ assegurar “o cumprimento dos deveres fundamentais que sobre eles imperam nos termos da presente lei” (negrito nosso). Ou seja, esta Comissão detém competência para avaliar criticamente a conduta deontológica dos jornalistas, abarcando todos deveres referidos no artigo 14.º do Estatuto do Jornalista, e sobre ela emitir juízos de valor.
O mesmo entendimento teve a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ao emitir um parecer sobre esta questão, onde reconhece competência à CCPJ para emitir juízos de valor sobre os deveres dos jornalistas previstos no nº 1 do artigo 14.º, “mesmo que estes não assumam o caráter sancionatório de que se podem revestir a violação dos deveres previstos no nº 2 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista”.
Têm chegado à CCPJ um crescente e elevado número de participações, denúncias, queixas e reclamações por alegadas violações, em pleno exercício da sua atividade profissional, dos deveres fundamentais dos jornalistas expressos nas alíneas do n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista, nomeadamente: o recurso abusivo a uma informação com falta de rigor, sem isenção, que recorre ao sensacionalismo e que não demarca claramente os factos da opinião - alínea a); ou, a sistemática violação do dever que o jornalista tem de diversificar as suas fontes de informação e, sobretudo, ouvir as partes com interesses atendíveis nos casos que noticiam - alínea e); ou ainda o dever de identificar as fontes de informação e atribuir as opiniões recolhidas aos respetivos autores - alínea f). Por isso, o Secretariado da CCPJ, depois de analisadas e avaliadas cada uma dessas queixas, reclamações, etc., tem emitido recomendações a jornalistas aconselhando-os, sobretudo, a absterem-se de praticar atos e ou condutas transgressoras dos deveres de ética profissional consagrados no n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista, quando notória e comprovadamente violados. Neste sentido, o Plenário da CCPJ recomenda o seguinte:
1 - Os jornalistas devem providenciar no sentido de se abster de praticar atos e ou condutas que coloquem em causa a confiança do público recetor de informação jornalística.
2 - Os jornalistas devem desenvolver um clima de confiança com as suas fontes e recorrer sempre a meios leais para obter informações e abster-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja.
3 - Os jornalistas nunca devem descurar as boas práticas de cruzamento de informações para verificar, conferir, averiguar e confirmar os dados das notícias porque o rigor e isenção são a base e a grande mais-valia da diferenciação do jornalismo.
Importa realçar que é indubitável que a liberdade de expressão e de criação dos jornalistas não está sujeita a impedimentos ou discriminações nem subordinada a qualquer tipo ou forma de censura. Isso mesmo prevê o artigo 7.º do Estatuto do Jornalista.
Contudo, o livre exercício da atividade do jornalista também acarreta deveres. Sobretudo, porque em causa está um igual direito constitucionalmente consagrado de todos de se informar e de ser informado.
Aclama o n.º 1 do artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa o princípio fundamental da Liberdade de Expressão e Informação, ao definir que: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.
A relevância deste princípio para o Estado de Direito Democrático impõe que as regras de atribuição de títulos profissionais de jornalista seja tão rigorosa quanto possível sob pena de se desvirtuar, ao sabor dos diversos grupos de interesses existentes nas sociedades modernas, o tão importante dever de informar e de o fazer com rigor, isenção, integridade, única forma de conseguir que o direito de ser informado seja assegurado e livre de quaisquer interferências menos lícitas ou próprias.
Daí que o papel do jornalista assuma, na sociedade, uma relevância tal que torna exigível um maior rigor no desempenho da sua atividade enquanto mediador insubstituível.
É reconhecido que titularidade do direito à informação, na sua tripla vertente (o direito a informar, a informar-se e a ser informado) pertence aos cidadãos, e não aos jornalistas.
A liberdade de imprensa é condição e meio de realização desse direito, agindo os jornalistas em nome do público que deve e quer ser informado.
Por isso a atuação do jornalista quando acede às fontes de informação, quando trata a informação, quando a valida, relaciona com outros elementos de que disponha e a interpreta com vista à sua divulgação, deve respeitar os direitos dos consumidores de informação a informarem-se e serem informados.
Estes princípios constitucionais não podem sair beliscados até para o saudável exercício da democracia. Daí o entendimento da CCPJ de que só com um rigoroso cumprimento dos deveres fundamentais dos jornalistas no exercício da respetiva atividade com respeito pela ética profissional que se encontram, sobretudo, consagrados no artigo 14.º do Estatuto do Jornalista este objetivo poderá ser alcançado.
Lisboa, 4 de janeiro de 2023
O Plenário da CCPJ
[1] Proposta de Lei n.º 76/X – Disponível em: https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=14894