A pedido da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), o Sr. Professor José Melo Alexandrino analisou a Lei n.º 27/2021, de 17 de maio, tendo produzido o documento que a seguir se divulga.
DEZ BREVES APONTAMENTOS SOBRE A
CARTA PORTUGUESA DE DIREITOS HUMANOS NA ERA DIGITAL
- A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, aprovada pela Lei n.º 27/2021, de 17 de Maio, começa por ser um documento com uma designação anómala: por um lado, porque Carta portuguesa dos direitos humanos é uma contradição nos termos, uma vez que os direitos humanos são, por natureza (seja ela moral ou internacionalmente aferida), direitos que não podem cingir-se ao âmbito estadual; por outro lado, porque, querendo aprovar uma carta de direitos humanos, o Estado português deveria ter promovido uma conferência internacional e não um procedimento legislativo.
- A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital visa menos proteger os direitos e liberdades da pessoa humana do que introduzir limites não constitucionalmente previstos à liberdade de expressão, tratando-se de uma verdadeira lei de “repressão do pensamento”, tal como este deve ser entendido à luz da Constituição, pois não só esvazia de sentido útil a velha ideia de “leis gerais” (ainda reflectida no artigo 37.º, n.º 3, da Constituição), como ela própria se prefigura em boa medida (particularmente nos artigos 4.º e 6.º) como “lei especial” (no sentido do artigo 8.º, § 2.º, da Constituição de 1933), com a agravante de remeter ainda para outras leis do mesmo género.
- Não aumentando por isso o campo da liberdade de expressão (nem no plano interno, nem no internacional, nem no moral), a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital aumenta sim o campo da intervenção do Estado (em especial, nos artigos 3. º, n.º 2, 4.º, 6.º, 13.º, n.º 1, 15.º, n.º 2, e 21.º, n.º 3), num domínio onde vigora uma estrita regra de «distância», bem clara no artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem ou no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
- Além da desgraduação da concepção constitucional da liberdade de expressão (aproximando-a do detestável paradigma francês das “liberdades administradas por lei”) e da confusão que introduz no campo dos direitos fundamentais da comunicação (artigos 2.º, 3.º, n. º 1, 4.º, 6.º, 7.º, e 16.º, n.º 1), a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, nas suas disposições mais criticáveis, envolve um triplo efeito negativo sobre esses direitos fundamentais: (i) um efeito restritivo (artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1, 4.º e 6.º); (ii) um efeito inibitório (artigo 6.º, n.º 2 a 5); (iii) e um efeito discriminatório (artigo 6.º, n.º 6) - neste último caso, como se reconheceu no parecer da ANACOM.
- A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital é redundante, quer relativamente aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, quer relativamente aos direitos humanos reconhecidos internacionalmente, quer relativamente aos direitos humanos fundamentais reconhecidos no âmbito da União Europeia, acrescentando sim insegurança jurídica, como se reconheceu no parecer do Conselho Superior do Ministério Público.
- A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital colide em diversos pontos com o Direito da União Europeia e com a própria jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, como se reconheceu no parecer da Comissão Nacional de Protecção de Dados.
- A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital interfere, no seu artigo 6.º, no âmbito das atribuições e competências da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, em termos dificilmente compatíveis com as exigências constitucionais, como se reconheceu no parecer dessa mesma entidade.
- A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital mistura, sem sistema e sem critério perceptível, normas substantivas, organizativas, promotoras e simplesmente programáticas com objetivos políticos e declarações vazias.
- A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, como resulta do procedimento legislativo, é um documento sem apoio algum no Direito Comparado, (salvo na muito distinta lei brasileira do "Marco Civil da Internet"), no Direito Internacional e na literatura de referência.
- Independentemente da importância do tema e da relevância de algumas das suas disposições, a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital é nos seus aspectos mais contestáveis um documento baseado em notórios equívocos sobre o objecto, conceitos e âmbito de regulação dos parâmetros europeus para que remete (especialmente no artigo 6.º) ou dos parâmetros de Direito Comparado e de Direito Internacional invocados ao longo do procedimento legislativo.
2 de Junho de 2021
José Melo Alexandrino
(Professor da Faculdade de Direito de Lisboa)